Tuesday, May 11, 2010

Tolerância de Ponto


A vinda do Papa Bento XVI a Portugal mereceu que o estado garantisse tolerância de ponto aos funcionários públicos. A incoerência das reacções que isso provocou nos vários grupos políticos é curiosa. A direita santinha, sempre tão empenhada a criticar as greves e a falta de produtividade do nosso país, ficou agora bastante silenciosa. Grande parte da esquerda ficou, pelo contrário, escandalizada com a garantia desta tolerância de ponto aos funcionários públicos. Esta estranha inversão de papéis mostra que, na verdade, as convicções religiosas de cada um são suficientemente fortes para afastarem a coerência política.

De qualquer forma, o mais importante é que ontem, no Expresso, Daniel Oliveira (com quem raramente concordo) explicou muito bem porque é que esta tolerância de ponto é inaceitável. Reproduzo o texto integralmente.

Esta semana, ateus, agnósticos, protestantes, hindus, muçulmanos e judeus vêem as escolas dos seus filhos, públicas e supostamente laicas, encerradas. Razão: os católicos recebem o líder da sua Igreja e por isso todos os restantes são obrigados e ficar com os seus filhos em casa e muitos deles obrigados e pôr um ou dois dias de férias.

Esta semana, os cidadãos portugueses ateus, agnósticos, protestantes, hindus, muçulmanos e judeus estão impedidos de tratar de qualquer assunto que envolva o Estado porque os católicos (ou alguém por eles) decidiram, ao arrepio da leis da República, parar o país para tratar dos seus assuntos.

Esta semana, os funcionários públicos ateus, agnósticos, protestantes, hindus, muçulmanos e judeus estão impedidos de ir trabalhar para que os seus colegas católicos tratem de uma celebração religiosa que apenas a eles diz respeito.

Esta semana os contribuintes ateus, agnósticos, protestantes, hindus, muçulmanos e judeus pagam as despesas salariais de todos funcionários públicos - os católicos e os que não o sendo não podem ir trabalhar - para que a Igreja Católica, uma entre várias, receba o seu Papa.

Diz a Constituição da República Portuguesa: "Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, perseguido, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever por causa das suas convicções ou prática religiosa". Repito: ninguém pode ser privilegiado ou beneficiado. E diz também: "O Estado não discriminará nenhuma igreja ou comunidade religiosa relativamente às outras". Estou seguro que quando mais algum religioso tiver uma qualquer celebração semelhante não terá direito ao mesmo tratamento.

Esta semana a laicidade e neutralidade religiosa do Estado foi suspensa e todos somos católicos à força. Porque quando chega à relação do Estado com a Igreja Católica Apostólica Romana, os cidadãos não católicos são tratados como espectadores e a Constituição do País como adereço.

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