Há uns anos circulava pela internet, a uma velocidade que só as novas tecnologias de informação permitem, um mail que se tornou muito conhecido e polémico, e que vinha acompanhado da foto à esquerda. Era sobre um artista que tinha deixado um cão a morrer de sede e de fome numa exposição de arte. Com esta peça artística, havia uma mensagem a passar: "O importante para mim é constatar a hipocrisia alheia: um animal torna-se o centro das atenções quando o ponho num local onde toda a gente espera ver arte, mas deixa de o ser quando está na rua. O cão está mais vivo do que nunca porque continua a dar que falar."
Há uns dias, no site do Expresso, li uma notícia que, com as devidas diferenças, me fez lembrar esta história do cão e do artista. No Reino Unido, uma bailarina epiléptica foi paga para ter um ataque de epilepsia em pleno espectáculo. Ficará dias sem dormir e sem comer, suspenderá a medicação e tomará estimulantes, para que durante o espectáculo o ataque possa ocorrer. O teatro diz que "num determinado momento, Marcalo poderá sofrer um ataque epiléptico. Quando este ocorrer, soará um alarme, as luzes aumentarão de intensidade, deixará de ouvir-se a música e uma série de câmaras gravará o ataque", convidando também o público a gravá-lo com o telemóvel.
Sem querer colocar estes dois eventos no mesmo saco (afinal de contas, o cão, ao contrário da bailarina, não teve escolha quanto a submeter-se ou não ao triste espectáculo), a verdade é que existe uma ligação entre eles. Ambos me fizeram colocar a questão: a arte terá limites? Isto é, será aceitável que, para se exprimir artisticamente, um artista possa utilizar todos e quaisquer meios, mesmo que sejam para promover um espectáculo absolutamente grotesco, nojento, moralmente condenável e perigoso para a saúde ou para a própria vida? A resposta, evidentemente, só pode ser não: tal não é aceitável.
Esta foi, aliás, a opinião da grande maioria das pessoas face ao triste espectáculo do cão que foi deixado a morrer de sede e de fome. Pela internet, junto com o referido mail, passaram petições com milhares de assinaturas por parte daqueles que repudiaram a situação. Felizmente, neste aspecto, parece-me que a decência ainda predomina, o que levou este evento a tornar-se ironicamente curioso: o objectivo do artista era constatar a hipocrisia das pessoas, mas o essencial acabou por ser o facto das pessoas terem podido constatar a hipocrisia do próprio artista.
Para mim, o facto de de vez em quando se levar avante um espectáculo deste tipo tem que ver com uma confusão que, aliás, é muito comum na arte pós-moderna. A confusão é entre arte e choque. Se se conseguir chocar alguém e se isso for feito num museu, foi produzida arte. Ou seja, alguns artistas pós-modernos querem-nos convencer de que as palavras arte e choque são sinónimos. Só que há um problema: não são. De facto, é possível chocar as pessoas através da arte (perco a conta ao número de vezes que fico chocado quando vejo um filme...), mas também é possível chocá-las promovendo espectáculos absolutamente básicos, primários, insultuosos, e indignos da inteligência humana.
Uma vez ouvi um engenheiro dizer que, para um trabalho de engenharia, eram necessárias as seguintes qualidades nas respectivas proporções: uma tonelada de matemática, duas toneladas de física e oito toneladas de bom senso. Ou seja, mesmo num trabalho em que é possível estabelecermos razoavelmente os nossos limites em termos mais rigorosos, através da matemática e da física, o bom senso é indispensável. A arte não pode ser excepção. E isto leva-me finalmente a responder à questão que coloquei no início: a decência e o bom senso devem estabelecer os limites para a expressão artística. Nestes casos que relatei, esses limites foram largamente ultrapassados.
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