Grapes of Wrath, de John Ford (adaptação cinematográfica do livro de John Steinbeck), é um filme sublime e o melhor que vi deste realizador. Em plena Grande Depressão, camponeses do interior dos Estados Unidos são expulsos das suas terras e rumam para Ocidente, sem dinheiro e sem comida, à procura de empregos inexistentes. Com uma mensagem que se identifica com uma visão política claramente de esquerda, existe uma questão interessante que se pode colocar ao ver o filme (isto para além do interesse óbvio de se estar a ver um dos melhores filmes de sempre). O que é que pode ter motivado John Ford, um grande conservador e tudo menos revolucionário, a filmar uma história deste género com a paixão com que o faz?
Sabendo isto sobre Ford, é fácil concluir que objectivos planfetários de servir certas visões políticas não foi certamente o que motivou. Na verdade, nem era preciso conhecer a sua visão política para se saber perceber que o que se está a ver se encontra no extremo oposto daquilo que se pode classificar como planfetário. Isto porque o que se vê na tela não são ícones que representam a luta do povo, mas um conjunto de seres humanos, cada um possuidor da sua própria individualidade, e que juntos constituem a família que o filme segue.
É possível arranjar uma lista quase infindável de razões que justificam esta visão sobretudo humana e não política. Note-se, por exemplo, no reencontro de Tom Joad com a mãe quando este regressa da prisão passado quatro anos, em que o distanciamento emotivo do cumprimento se opõe à profundidade do sentimento que existe naquela relação. Ou na morte dos mais frágeis e idosos e no desespero por dinheiro e por comida que vai contribuindo para a progressiva desconstrução da unidade familiar. Ou na despedida de Tom Joad da mãe, quando este tem de abandonar os seus para os proteger e lutar por aquilo que considera justo: quando finalmente se afasta, aquele portento de força que é a figura da mãe, que carrega a família às costas, torna-se de repente assustadoramente frágil naquele plano absolutamente genial em que Ford a filma à distância a ver o filho partir, onde pouco mais se consegue distinguir para além das lágrimas que brilham na escuridão envolvente da noite.
É esta visão de Ford ao longo de 2h10 perante cada indivíduo e a unidade familiar que constituem que faz com que, no final, quando essa extraordinária actriz que é Jane Darwell exclama "we'll go on forever, 'cause we're the people", não exista aí nada de minimamente planfetário ou que seja de alguma forma gratuito. Porque mais do que o grito de um povo, o que nós – espectadores – vemos nessa exclamação é, acima de tudo, o grito de uma pessoa dotada da sua própria individualidade.
No entanto, esta não era a minha questão inicial. Penso já ter tornado claro porque é o que filme não é, nem nunca poderia ser, planfetário, mas isto não justifica totalmente o interesse de Ford numa história com implicações políticas com as quais, à partida, não se identificaria. Para o explicar, deixo as palavras de João Bénard da Costa, que nos recorda que existe uma diferença fundamental entre identificação política e identificação moral:
O milagre das Vinhas da Ira, como o de Young Mr. Lincoln do mesmo Ford e com o mesmo Fonda, no ano anterior, tem a explicação numa convicção que não é "colada" por imposições propagandísticas, mas provém duma certeza de nível muito mais profundo. Ford não "cantou" Lincoln ou a família Joad para servir os interesses duma política (embora seja outra questão saber se efectivamente as serviu) mas porque moralmente o seu credo se identificava totalmente com as ideias expressas nessas duas obras. São filmes sem dúvidas nem manhas – actos de fé e esperança – filmes de um crente que nenhuma dúvida, oportunismo ou servilismo, atravessa. Realizador e "mensagem" identificam-se plenamente e, por isso, o olhar é tão límpido, a beleza tamanha e a força tão pura.
Nota: os sublinhados no excerto citado estão no original.
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