Quando C. P. Snow deu a conferência sobre As Duas Culturas - a cultura das ciências e a das humanidades, que se encontravam separadas por uma enorme falta de entendimento e compreensão - não só fez um exemplar retrato da sociedade da época como, sem o saber, foi quase profético em relação ao que viria a ocorrer na sociedade daí a 50 anos. As Duas Culturas de C. P. Snow continuam bem presentes na realidade de hoje em dia, por variadíssimas razões. Normalmente, quando este assunto é abordado, fala-se sobretudo na ignorância em relação à outra cultura; contudo, há outras razões - talvez mais graves - para que exista este fosso enorme que as separa.
Nessa conferência, C. P. Snow acusou ambos de que essa ignorância se estava a instalar, mas foi especialmente crítico dos intelectuais humanistas ao dizer que, para além dessa ignorância, estes revelavam também um enorme desprezo que se baseava na ideia de uma suposta superioridade intelectual. Que é como quem diz, nós estamos num patamar demasiado elevado de intelectualidade para perdermos o nosso tempo com questões científicas e tecnológicas.
Esta ideia é muito comum hoje em dia, e verifica-se sobretudo no desprezo pela matemática revelado por muitos dos que se escapam dela mal terminam o ensino básico. Não saber de história ou de português é considerado grave; no entanto, para muitos não saber de matemática ou de ciência é motivo de um certo orgulho chico-esperto, difícil de compreender. Richard Dawkins, no seu livro Unweaving the Rainbow: Science, Delusion and the Appetite for Wonder, exemplifica e comenta este tipo de situação:
Admitting what you don't know is a virtue, but gloating ignorance of the arts on such a scale would, quite rightly, not be tolerated by any editor. Philistine ignorance of science is still, in some quarters, thought witty and clever. How else to explain the following little joke, by a recent editor of the London Daily Telegraph? The paper was reporting the dumbfounding fact that a third of the British population still believes that the sun goes round the earth. At this point the editor inserted a note in square brackets: '[Doesn't it? Ed.]' If a survey had shown a third of the British populace believing that Shakespeare wrote The Iliad, no editor would humorously feign ignorance of Homer. But it is socially acceptable to boast ignorance of science and proudly claim incompetence in mathematics. I have made the point often enough to sound plaintive, so let me quote Melvyn Bragg, one of the most justly respected commentators on the arts in Britain, from his book about scientists, On Giants' Shoulders (1998).
There are still those who are affected enough to say they know nothing about the sciences as if this somehow makes them superior. What it makes them is rather silly, and it puts them at the fag end of that tire old British tradition of intellectual snobbery which considers all knowledge, especially science, as 'trade'.
O outro aspecto que gostaria de abordar leva ainda mais longe esta ideia de desprezo, e revela uma incompreensão que ultrapassa todas as barreiras do bom-senso. Este aspecto tem que ver com a incapacidade de alguns artistas em aceitar que é possível gostar-se genuinamente de matemática, de ciências e de tecnologia. Repare-se que já não estamos no campo do gosto pessoal, nem no campo em que cada um opina sobre se deve ou não informar-se melhor acerca de determinada área do conhecimento, mas sim no campo em que se questiona a honestidade do gosto alheio.
Várias situações que têm acontecido comigo exemplificam na perfeição o que acabei de referir. Há alguns anos, abandonei a música porque me apercebi de que preferia uma carreira relacionada com uma área mais científica. Nessa altura, foi-me dito por professores meus de música que devia ter consciência de que já não teria no meu futuro profissional uma relação tão íntima com aquilo que iria fazer. Que é como quem diz: os artistas ligam-se de tal forma ao que fazem que vivem-no 24 horas por dia, enquanto os outros olham para a sua profissão como algo separado da sua vida pessoal. Desta forma, foca-se uma ideia muito comum: a ideia do prazer da arte face à frieza desinteressante da ciência.
Outra situação idêntica ocorreu à conversa com uma pessoa intimamente ligadas às artes. Quando lhe contava a história da minha vida, procurei explicar-lhe que a minha mudança de ideias quanto ao meu futuro profissional se devia à minha paixão pela matemática, pela física e pela importância do desenvolvimento tecnológico. Contudo, os argumentos foram inúteis, pois ele acabou por ficar convicto de que o que eu aprendia no Instituto Superior Técnico até me poderia ser mais útil do ponto de vista profissional, mas que era impossível que a minha paixão estivesse ali.
Infelizmente, muitos artistas têm a noção de que todos os outros - ao contrário deles próprios, em que os interesses pessoais e profissionais se fundem num só - vêem a sua profissão (ou, no caso de estudantes como eu, as matérias que estudam) como uma obrigação chata e desgastante, que cumprem apenas para poder viver. E é impossível convencê-los do contrário; de que é possível gostar de outras coisas para além da arte, da história ou da literatura.
Assim, As Duas Culturas vão continuar separadas durante os próximos largos anos, e será impossível fundi-las numa única, muito mais desejável: a Cultura do Conhecimento.
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