Decidi fazer uma lista de 10 filmes desta década que adorei, com um pequeno comentário a cada um. O objectivo destes comentários não é fazer uma reflexão sobre cada filme, mas tentar partilhar com os leitores um pouco do fascínio que sinto por eles. Porque me custa sempre ordenar estas listas de preferências, limitei-me a colocar os filmes por ordem alfabética.
Artificial Intelligence: AI, de Steven Spielberg
Os preconceitos com o sentimentalismo Spielberguiano impediram muita gente de apreciar como deve ser este filme absolutamente extraordinário. David é um robot tão real que possui a característica mais humana possível: a capacidade de sonhar. No entanto, para David essa capacidade é insuficiente para se tornar um ser humano: para que tal seja possível, sente ainda a necessidade de ser amado. No fundo, é pouco importante o facto de David ser um robot, pois esta jornada épica diz muito a cada um de nós, por se tratar da busca por conquistar a nossa própria humanidade.
The Aviator, de Martin Scorsese
Em relação à década passada, esta foi menor para Scorsese. Não fez nada com o poder de um Casino, ou de um The Age of Innocence (ou até de um Kundun – não há filme mais injustiçado que este!). Claro que, para a qualidade de Scorsese, menor pode significar excelente. É o caso de filmes como Gangs of New York, de The Departed ou este The Aviator. Resolvi destacar este, pois penso que é aqui que Scorsese vai mais fundo na complexidade das suas personagens (Howard Hughes fechado na sala de projecção é de um poder imenso) e na forma como as filma (a montagem nas sequências das audiências são absolutamente memoráveis).
Big Fish, de Tim Burton
Trata-se do melhor filme de Tim Burton. A abordagem da capacidade de sonhar como sendo parte indispensável da realidade nunca foi tão tocante em Burton como aqui, pois tem como suporte uma poderosa relação pai-filho. Big Fish é ainda a história de uma vida: como os nossos sonhos evoluem constantemente, como quando somos jovens é mais importante a busca pela perfeição do que de facto encontrá-la (Edward Bloom rejeita ficar em Specter, a cidade perfeita), e como a nossa visão sobre o que é bom e mau muda consoante a idade que temos (mais tarde, Bloom já não encontra em Specter a mesma perfeição). Tim Burton já tinha imaginado mundos fantásticos de fantasia, mas nunca tinha abordado de forma tão complexa a seguinte questão: de que forma é que os nossos sonhos se relacionam com a nossa realidade?
Eastern Promises, de David Cronenberg
Como estou preguiçoso nesta véspera de ano novo, prefiro recuperar o que disse sobre este filme quando o vi pela primeira vez no Festival do Estoril. Tudo em Eastern Promises é fascinante, arrebatador, hipnotizante: a simplicidade narrativa em oposição à complexidade de personagens e emoções; a contenção dramática total, em todos os momentos do filme, face à brutalidade do impacto emocional que se vai apoderando do espectador; a banda-sonora de Howard Shore sempre de mãos dadas com essa contenção dramática, nada directa e sem um único momento de climax e de explosão, mas de uma profundidade musical impressionante; a fotografia de Peter Suschitzky, num estilo idêntico ao do A History of Violence, mas ainda mais perfeita e trabalhada a nível de cores e sombras; as interpretações, através da entrega por completo dos actores às personagens, destacando-se obviamente a sóbria (e magnífica) composição de Viggo Mortensen a nível físico e emocional; os diálogos, que muito pouco dizem, porque neste filme de inigualável subtileza nada é dito – nem sentimentos nem emoções –, já que para os captar está lá a câmara de um génio: David Cronenberg.
Gran Torino, de Clint Eastwood
Admito que a presença de Gran Torino é uma escolha política, mas não tive hipótese, pois é a única maneira de conseguir não encher este top de filmes de Eastwood, que resolveu esta década dar-nos uma quantidade imensa de obras-primas: Mystic River, Million Dollar Baby, Letters from Iwo Jima, Changeling – qualquer um destes poderia figurar nesta lista. Escolhi Gran Torino porque não há despedida mais comovente de um símbolo do cinema enquanto actor: neste filme está tudo o que Eastwood foi ao longo da sua carreira. Ao mesmo tempo, aborda temas como a juventude e a velhice, a fé e a religião, a vida e a morte (e como é tão curta a ponte que as liga).
Munich, de Steven Spielberg
Tentei não repetir realizadores, mas neste caso era tarefa impossível, pois não podia deixar de fora o melhor filme político pós-11/09. Devemos defender a nossa pátria ou a nossa própria moral? Spielberg levanta esta questão, mas não lhe responde (terá resposta?). Contudo, mostra-nos algo perturbante: o líder da operação israelita de vingança pelos atentados de Munique caminha inevitavelmente em direcção à morte. Não necessariamente uma morte física, mas profundamente moral e humana, que fica bem explícita no final quando Avner se apercebe de que perdeu uma das características mais intrinsecamente humanas: a capacidade de amar.
The New World, de Terrence Malick
Terrence Malick é o lirismo cinematográfico no auge. Não é difícil obter imagens e cores bonitas em cinema, com actores a debitar frases poéticas; o difícil é fazer com que essa beleza não agrade apenas os olhos, mas também a mente. Isto é, é preciso que essa beleza tenha alguma relação com os sentimentos mais profundos das personagens. Apenas um exemplo que mostra que nada em Malick está lá só para fazer bonito: há uma cena em The New World em que Pochaontas e John Smith expressam sentimentos soltos através de voz-off. Um não ouve o outro, mas o espectador sabe que os seus pensamentos coincidem de tal forma que esses monólogos em off são, na verdade, quase diálogos. Diálogos através de pensamentos… haverá forma mais subtil e poética de mostrar o amor partilhado entre dois seres?
Two Lovers, de James Gray
O jovem James Gray é um dos realizadores mais promissores para o futuro do cinema, sobretudo quando olhamos para os seus dois últimos filmes absolutamente magistrais. Um deles (que também poderia estar nesta lista) é We Own the Night, o outro é Two Lovers. É impossível ficar indiferente a esta poderosíssima história de amor dos tempos modernos, mas que recupera toda a simplicidade clássica de filmar personagens e relações. Joaquin Phoenix entrega uma das melhores interpretações da década.
The Village, de M. Night Shyamalan
Existe uma condição hoje em dia que parece ser indispensável para se ser crítico de cinema nos EUA: gozar com Shyamalan. Felizmente, a Europa foge a esta moda, e o trabalho de Shyamalan costuma ser reconhecido em países como a França. Shyamalan nunca foi tão complexo nos temas e nas personagens como em The Village. Este filme fala-nos do medo, e como ele influencia as nossas escolhas, recordando que este medo talvez não seja apenas uma imposição de forças exteriores, mas sim uma componente impossível de separar da própria condição de ser humano. Fala-nos também da esperança, da coragem e do amor, pois no limite talvez sejam essas as nossas maiores armas para lidar (em lugar da impossível tarefa de procurar eliminar) com os nossos medos mais profundos.
Yi Yi, de Edward Yang
Este é um filme sobre seres humanos e a forma como se relacionam entre eles. O que se encontra na relação com os outros oscila entre o fascínio e o desencanto. Às vezes parece existir só o segundo, porque este ofusca por completo o primeiro. Mas, como diz a certa altura uma personagem do filme, "apercebi-me de que as coisas não são assim tão complicadas; porque é que em tempos pareceram?". Yi Yi é sobre a importância dessa simplicidade, e como ela nos pode revelar o fascínio e a beleza que existe num mundo desencantado. E não há personagem mais fascinante do que a do miúdo de uns 6 anos, cuja curiosidade e a vontade de saber mais não tem limites. No final, confessa que quando for grande gostaria de dizer às pessoas coisas que elas não sabem; agora, enquanto criança, contenta-se em tirar fotografias à parte de trás da cabeça das pessoas, para lhes poder mostrar "aquilo que elas não podem ver".
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